Representantes do governo federal e de entidades nacionais, estaduais e municipais da área de educação divergiram, nesta segunda-feira (5), sobre a regulamentação do ensino domiciliar no Brasil, também conhecido pelo termo em inglês “homeschooling”. Eles participaram do primeiro ciclo de debates promovido pela relatora dos projetos de lei sobre o tema, deputada Luisa Canziani (PTB-PR).
O assunto consta do Projeto de Lei 3179/12, do deputado Lincoln Portela (PL-MG), e de outras sete propostas em tramitação na Câmara dos Deputados – algumas para permitir a educação domiciliar, como o Projeto de Lei 2401/19, enviado pelo próprio governo, e outras para proibi-la.
Na modalidade de ensino domiciliar, a educação recai sobre os próprios familiares do aluno, geralmente os pais ou grupos de pais, ou depende da contratação de professores particulares, chamados de tutores.
Presidente do Conselho Nacional de Educação (CNE), Maria Helena Guimarães de Castro disse que a entidade ainda não se manifestou coletivamente sobre o tema, mas pessoalmente, criticou o homeschooling. Segundo ela, o modelo domiciliar compromete a socialização, impede o contato do aluno com diferentes ideias e pensamentos, e desconsidera a importância da formação pedagógica e técnico-cientifica dos professores.
“Na minha visão, a regulamentação do ensino domiciliar compromete a convivência com diferentes grupos sociais, parte essencial do processo educativo e de humanização, pelos quais se estabelece relações de empatia, de solidariedade e de cidadania, essenciais para o desenvolvimento social, afetivo, psíquico e cognitivo de crianças e jovens”, disse Casto.
“Acho legitimo que uma família religiosa defenda o criacionismo, mas acho importante que o filho dessa família possa conhecer outras teorias, como a teoria de Darwin sobre a evolução das espécies”, completou.
A presidente do CNE pontuou ainda que faltam evidências científicas sobre a eficácia do ensino domiciliar, e destacou a dificuldade de muitas famílias de garantir a edução de crianças e jovens em isolamento social durante a pandemia de Covid-19. “Um médico, muitas vezes, não sabe como dar uma aula de matemática, assim como um professor não consegue fazer uma cirugia cardíaca”, disse.
Educar em casa
Os ministros da Educação, Milton Ribeiro; e da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, que também participaram do debate, relativizaram as criticas e defenderam o direito dos pais de escolher como querem educar seus filhos. Citando recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que reconheceu a constitucionalidade da educação domiciliar, mas a declarou ilegal até que seja regulamentada por lei, Ribeiro destacou que o governo decidiu priorizar o tema para colocar na legalidade milhares de pais que já praticam o homeschooling no Brasil.
“Hoje, na verdade, 85% dos países da OCDE [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico] já aderiram ao homeschooling. São cerca de 65 países. E os projetos não obrigam ninguém a aderir”, destacou Ribeiro. “Não vejo por que, a não ser para politizar, nós não termos uma modalidade de ensino domiciliar, colocando na legalidade mais de 35 mil famílias que já optaram por esse modelo.” Ribeiro também defendeu outras formas de socialização dos alunos educados em casa. “É claro que a escola oferece essa questão, mas existem outras formas de socializar, na família, nos clubes, nas bibliotecas e até mesmo nas igrejas”, disse.
Prioridades da Educação
Presidente do Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed), Vitor de Angelo reforçou que a escola é essencial para o processo de socialização e também defendeu a necessidade de professores ou tutores terem formação específica. Contrariando os números apresentados pelo ministro, De Angelo criticou o governo por defender o homeschooling como pauta prioritária para a educação.
“Essa agenda é extremamente minoritária. A Associação Nacional de Educação Domiciliar (ANED), fundada em 2010, informa que em 2019 havia 5 mil famílias adeptas do homeschooling. Ou seja, mais de 50 milhões de estudantes do País estão à margem dessa discussão”, disse.
O presidente Frente Parlamentar Mista da Educação, deputado Israel Batista (PV-DF), compartilha da mesma opinião. Para ele, após iniciar as etapas de universalização e de formação de professores, o Brasil deveria ter como foco a melhoria da qualidade do ensino e não priorizar o ensino domiciliar. “Isso pra mim é uma confusão mental. Isso não deveria ser a prioridade. Isso demonstra a falta de planejamento e de projeto para educação brasileira”, criticou.
Perda da guarda
A ministra Damares Alves destacou que muitas famílias que já adotam o ensino domiciliar têm enfrentado problemas na justiça, com pais correndo o risco de perder a guarda dos filhos por falta de matrícula em escolas tradicionais. “Cito o caso dos dois jovens de 13 anos de Minas Gerais que foram educados pelos pais e acabaram aprovados em vestibular. Eles não ficaram conhecidos por isso, mas pelo fato de os pais estarem sendo processados por educá-los em casa”, disse a ministra.
Autor do projeto em tramitação mais antigo sobre o assunto, o deputado Lincoln Portela (PL-MG) também criticou a perseguição a famílias adeptas do ensino domiciliar. “O Ministério Público ameaça tirar as crianças dos pais. Por que o Ministério Público não tira a guarda dos pais de 44% dos brasileiros que estão em evasão escolar [fora das escolas]?”, criticou.
Experiências internacionais
Relatora do projeto em Plenário, a deputada Luisa Canziani (PTB-PR), disse que pretende ouvir todos os lados e, ao final, apresentar ao Plenário um texto sensato, equilibrado e que resguarde os direitos das crianças à educação e que regulamente o direito das famílias de educar os filhos em casa. Segundo ela, na próxima quinta-feira (8) o debate será sobre experiências internacionais de homeschooling, com representantes do Chile, da Finlândia e dos EUA.
No Brasil, a Constituição Federal estabelece que a educação é “dever do Estado e da família” e, desde 2013, a Lei de Diretrizes e Bases Educacionais (LDB) exige que pais ou responsáveis matriculem os filhos em escolas da educação básica a partir dos quatro anos de idade. Até 2013, a idade mínima era 6 anos.
Já o Código Penal define como crime de abandono intelectual deixar, sem justa causa, uma criança de 6 a 14 anos fora da escola. Pais que não matriculem e cobrem a presença dos filhos na escola podem ser punidos com detenção de 15 dias a 1 mês ou multa.
Relatando abusos sofridos na infância, Damares Alves disse ainda que o homeschooling não tem relação com casos de violência e abusos conta crianças. “Fui abusada dos 6 aos 8 anos. E eu estava na escola. A escola não leu os sinais que eu estava mandando. Então, não se pode dizer que o ensino domiciliar vai aumentar os abusos”, disse.