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“A sensação é de impotência e revolta”, diz mãe de médica camaquense morta na Capital

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Toda vez que fecha os olhos, é o discreto sorriso de despedida da filha que aparece na memória de Marlene Müller. No domingo de Dia dos Pais, a fisioterapeuta, de 59 anos, recebeu a temida ligação que assombra a mente de muitos gaúchos. Sua filha, que há poucas horas havia se despedido dela e do marido, Marco Aurélio Mesquita Lerias, tinha sido assaltada e baleada no abdômen. Estava em estado grave, no hospital. 

Graziela Müller Lerias, 32 anos, era médica oftalmologista. Naquela noite, retornava de Camaquã, sua cidade natal, ao lado irmã, para retomar a rotina de trabalho após um final de semana ao lado da família. O “até logo” dito poucas horas antes se transformou em “adeus”. Gravemente ferida, a médica não resistiu. 

Há mais de duas semanas, Marlene convive com a dor de perder um filho para a violência. Revoltada com a insegurança que assola o Estado, conversou com Zero Hora sobre a sensação de impotência, as memórias da filha e a necessidade de que o governo tome atitudes urgentes. 

Como foram as horas que antecederam o crime? Vocês estavam todos reunidos?Estávamos festejando o Dia dos Pais. Foi um domingo muito legal, estávamos todos juntos. A Grazi ficou olhando os jogos na televisão, e eu preparando as coisas na cozinha. Parecia mais um domingo comum, só achei ela um pouco mais quieta do que o normal. Achei que fosse cansaço. Ela vinha trabalhando muito, pois estava querendo fazer um pé-de-meia para comprar equipamentos para seu consultório. Antes de ela ir embora, conversamos sobre a formatura da irmã, a Priscila, que seria dali a dois dias. Tudo transcorria bem. Na hora de ir embora, a Priscila sentou no banco de trás porque elas haviam levado os dois cachorros, e não queríamos que eles incomodassem a Grazi, que estava dirigindo. As duas amam os animais. Se a Priscila não tivesse sentado atrás, é bem provável que estivesse no banco da frente. Aí só Deus sabe….

 

Você lembra as últimas coisas que conversaram?

Lembro que falamos dos planos de ela retornar para a nossa cidade, Camaquã, no ano que vem. Ela morava em Porto Alegre há anos, junto com a irmã, para estudar e trabalhar. Lembro de recomendar cuidado no trânsito, pedir cuidado porque estava muito escuro. Nos abraçamos e nos beijamos, como sempre fazíamos. Ela estava com um sorriso tranquilo, calmo, meigo, e eu disse: vão com Deus minhas filhas.

 

Como foram as horas seguintes? A Priscila lembra da abordagem dos criminosos?

Ela só conta que colocaram um revólver prateado no vidro. Os criminosos saíram de um caminhão que estava parado atrás delas na sinaleira. Elas levaram um susto, e eles pediram para abrir a porta do carro. A Grazi tentou abrir, mas não conseguiu. Aí eles deram três tiros. Um deles atingiu o abdômen dela. E eles ainda tiveram a coragem de atirá-la para fora do carro, no meio do asfalto. A Priscila não sei como saiu. E somente uma pessoa ajudou elas. Uma senhora, ela foi a única que saiu do carro para acudir minhas filhas. Só essa senhora bondosa é que foi ajudar. Como você recebeu a notícia?A Priscila ligou para mim ainda muito calma, dizendo que não era para eu me preocupar, que a Grazi havia sido socorrida e estava fora de risco. A senhora que acudiu elas também me ligou. Um dia vou lembrar o nome da senhora e agradecer. Eu nunca podia imaginar que a Grazi não fosse sobreviver. Rezei demais pela vida dela. Ela era forte, saudável, tinha tudo para dar certo, mas sangrou muito. Durante a noite, passou por procedimentos cirúrgicos, mas só piorou, piorou, e eu não queria acreditar. Não podia acreditar. Só depois, vendo o corpo, tão amado, tão gelado, que pude me convencer de que era o fim. De que não tinha mais salvação.

 

Durante essa noite, muitas pessoas fizeram pedido de doação de sangue. Houve uma grande mobilização.

Sim. Quando estávamos lá no hospital, inúmeras pessoas vieram doar sangue. Recebemos muitas bolsas de sangue doadas para outros hospitais. Não imaginava que fosse tão difícil conseguir sangue do tipo O negativo. Daqui para frente, sempre vou fazer campanhas para doação, vou doar sangue, todos temos de doar mais. Não podia imaginar que fosse tão difícil. Agradeço a todos que mandaram. Infelizmente, no caso dela não serviram mais.

 

Você descreve a Graziela como uma mulher muito trabalhadora.

Ela era uma filha muito amorosa, desde muito cedo muito solidária, muito focada em tudo que fazia, em tudo que se propunha. Era paciente, resiliente e tinha muita humildade. Deixava uma marca registrada nas pessoas. Apesar de ter pouquíssimo tempo, sempre conseguia tempo para praticar atividade física. Tinha uma dedicação extrema aos estudos. Sempre quis aprofundar os estudos. Terminou residência em oftalmologia e quis continuar estudando. Foi aí que buscou uma especialização em retina. Ela estava muito feliz, realizada, operando, contando os avanços dos pacientes. A gente se emocionava muito com todos os depoimentos dos pacientes dela, que davam presentes, diziam que ela era um anjo. Eu estava realizada de ver ela assim. Sempre se aperfeiçoando, estudando.

 

Há quanto tempo a Graziela morava em Porto Alegre? Vocês temiam pela segurança delas na Capital?

Ia fazer cinco que ela morava em Porto Alegre. Antes, morou seis anos em Pelotas, para fazer faculdade. Sempre falávamos da questão da segurança. Eu comentava: “não saiam tarde”, “cuidem o trânsito”, “não saiam à noite de carro”, “peguem táxi”. Quando ela ia visitar o noivo, César, que mora em Pelotas, ficava feliz que ela ia de ônibus. Meu grande temor eram elas dentro do carro. E a Grazi sempre dizia: “Mãe, não te preocupa que a gente se cuida”. Mas eu tinha muito medo, há muito tempo estava apreensiva, assustada com tudo. Eu rezava, pedia muita proteção. Até achava que sufocava elas, que estava passando muita neura por estar lembrando sempre as recomendações, conselhos de não reagir jamais. Mas as coitadas não reagiram.

 

Ao longo dos últimos meses, o receio tinha aumentado, com esse aumento da violência?

Sim, a minha preocupação cresceu muito. Mas elas estavam paradas na sinaleira, esperando abrir o sinal para chegar em casa. Tinham chegado até ali. O delegado disse que era um alvo fácil, por ser mulher, um carro fácil de comercializar. Na verdade, era um carro velho que ela tinha juntado dinheiro para comprar. Não sei, sigo tentando entender. Preciso que Deus me ajude, porque todos esses sonhos dela, do marido, o casamento, dos meus futuros netos, não existem mais.

 

Qual a sensação para um pai, uma mãe, perder um filho para essa violência que assola o nosso Estado?

É uma sensação de impotência total. Também de revolta, mas a dor é tanta, tanta, o coração fica tão dilacerado que a gente fica anestesiado para quase tudo. Se não tivesse Deus, o desespero seria muito maior. Acho que as coisas não podem ficar assim, elas têm de mudar. Tenho minha filha Priscila em Porto Alegre ainda, os filhos dos meus amigos, milhares de adolescentes, de jovens e crianças estudando, milhares de mães buscando os filhos nas escolas. Não pode ficar assim. Minha filha estudou 13 anos para dedicar a vida às pessoas, à medicina, à cidade, ao Estado.

 

Você acompanhou a ação da polícia nos dias seguintes?

Sim, sei que eles estão presos, mas de que adianta eles estarem presos com estas leis? A gente sabe que há relaxamento das penas. A minha filha teve pena de morte decretada por estes criminosos. Quais os direitos que ela teve? Eu pergunto para o Legislativo e o Judiciário quais os direitos que minha filha teve? Onde estão vocês? Pelo amor aos seus, pensem. O sistema penitenciário atual é a pós-graduação para o crime. Algo tem de mudar.

 

Você acompanhou também, pela mídia, os outros crimes que ocorreram?

Sim, e por isso também faço um apelo para o senhor governador. Me dirijo ao senhor com todo respeito. Lembrando que votei no senhor, acreditei na sua equipe. Olhe para seu Estado. Olhe o que está acontecendo. Virou uma roleta russa diária nas ruas. Criminosos por todos os lados. Em nome da minha filha sacrificada, Graziela Müller Lerias, da mãe Cristine Fonseca Fagundes, do personal trainer Marcel Thomé, do porteiro José Luís Godinho do Sacramento e de todas vítimas de todas camadas sociais, vou lhe implorar: propicie a todos jovens e trabalhadores que tenham liberdade de ir e vir sem ter pânico na rua. Não pense só em jogos de poder. Há muito tempo, saúde, segurança e educação são deficitários, e é por isso que temos um sistema falido. Pense com humanidade. É necessário mudar para que esse horror tenha fim. Vocês têm a capacidade de mudar. Invistam nisso, acredite e valorize o seu povo. No último domingo, completou duas semanas da morte da Graziela.

 

Como vocês estão lidando com a nova realidade?

Lembro dela todos os dias, todo o tempo. Lembro do olhar meigo, do carinho, não consigo me separar do travesseiro dela. Estamos sentindo muita falta. Fico só pensando no futuro. Como vai ser o futuro sem aquele abraço, sem aquele olhar amoroso, aquele sorriso? Meu único conforto fica na fé em Deus, na presença da minha filha Priscila, que foi o presente que Deus me deixou junto com o meu marido, familiares e amigos.