Uma cena incomum leva os pedestres geralmente apressados da Rua dos Andradas a diminuir o passo e parar para ver. É protagonizada por uma senhora de 64 anos puxando um golden retriever em um carrinho com plataforma de madeira, daqueles utilizados para carregar materiais em depósitos.
— É um “cãodeirante” — diz a mulher aos curiosos.
Ela é a professora universitária aposentada Marília Levacov — que por alguns é conhecida como professora Levadoga. Ele responde por Moishe e tem idade aproximada de 15 anos. Já era velhinho quando foi resgatado por uma ONG na estrada, com cinco costelas quebradas, displasia nos quadris, duas doenças do carrapato, anemia, pneumonia e até mesmo artrose. Marília o adotou e providenciou todo o tratamento.
— Meu coração fez plim-plim. Foi amor à primeira vista — relata.
Em função da idade avançada, Moishe não tem mais fôlego para caminhadas. Entrega-se depois de alguns passos e deita no chão, ofegante.
Por isso, Marília adaptou a cadeira de rodas da sua falecida mãe para fazer o “translado” do cão entre o 31° andar do Edifício Santa Cruz (o topo do prédio mais alto da cidade) e a portaria. Então o coloca sobre o carrinho-plataforma, emprestado do edifício, e vão até a Praça da Alfândega. Repetem o ritual pelo menos três vezes por dia, para que o cão (definido pela dona como um gentleman) não faça xixi dentro de casa.
— É um esforço físico erguê-lo para tirar e colocar no carrinho, pois ele pesa 40 quilos. Mas já se tornou parte da rotina, não parece nada demais. Eu faria isso por um pai, por um filho, e não hesitaria em fazer por um amigo, que é o que ele é — conta Marília.
O outro pet da professora, a cadela Sépia, vai correndo ao lado do carrinho. A dupla de goldens faz sucesso por onde passa: não para de chegar gente pedindo para acariciar os pelos, perguntando a idade ou apenas comentando a fama da dupla — um post recente no Facebook rendeu mais de 8 mil curtidas. A professora universitária também não nega conversa.
— Eu sou o Uber — brinca daqui.
— Esse é o “bisa” Moishe, e ela, a “vó” Sépia — apresenta de lá.
— Diz que a gente manda uma lambida pra ele — responde a um senhor que se aproximou para falar do cachorro dele.
O povo se impressiona com a dedicação de Marília.
— Que criatura maravilhosa. Ela deve amar muito os bichos, que nem eu — comentou a aposentada Carmen Candal, 76 anos.
A interação gerada pelo carisma canino dá à professora universitária bastante pano para a manga. Tanto que ela publicou um livro com histórias que ouviu passeando com sua cadela, chamado Luna na Praça da Alfândega, em 2009. Luna, uma labradora, morreu no mesmo ano.
Já faz cinco décadas que Marília leva pets para passear no centro de Porto Alegre. A paixão dela por animais é antiga e vem de berço — conta que, por recolher a bicharada abandonada, a família tinha fama de “meio maluca” na vizinhança. Foi inclusive seu pai, falecido há dois anos, que escolheu o nome do Moishe — vem de Moshe, que em hebraico é Moisés. A relação é que o personagem bíblico foi salvo das águas, e o cão, resgatado na estrada para Cidreira.
Cena foi revelada na Feira do Livro
A história de amor do Moishe e da Marília encantou a patrona da Feira do Livro de 2016, Cíntia Moscovich, que chegou a escrever sobre o assunto em coluna publicada em Zero Hora. Ela diz que lhe chamaram a atenção a dedicação e o cuidado com o cão idoso.
— Se existe esse clichê de amor incondicional, é dela com esses bichos — define a escritora.