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Reportagem especial

Processo que busca responsabilizar o Brasil por violação dos direitos humanos no caso Kiss avança na Comissão Interamericana

Nesta próxima etapa, a Comissão vai julgar o mérito das possíveis violações legais do Estado brasileiro aos direitos à vida, à integridade pessoal, ao acesso à justiça e ao devido processo legal.
Foto: Airton Lemos
Foto: Airton Lemos

O processo internacional que busca responsabilizar o Brasil por violação dos direitos humanos no caso da tragédia na boate Kiss avançou na Comissão Interamericana (CIDH) Nesta próxima etapa, a Comissão vai julgar o mérito das possíveis violações legais do Estado brasileiro aos direitos à vida, à integridade pessoal, ao acesso à justiça e ao devido processo legal.

A denúncia da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM) foi realizada em 2017, e, no ano passado, ocorreu a admissão do caso perante a Comissão, tornando o Brasil réu. Segundo a advogada Tâmara Biolo, há inúmeras provas que demonstram a omissão do poder público em vários aspectos na tragédia.

“O réu é a União, que tem personalidade jurídica internacional. Uma vez que a Comissão Interamericana entenda que houve violação e que o Estado é responsável, o Brasil, internamente, tem a obrigação de fazer com que seus órgãos investiguem e processem as pessoas responsáveis, indenizando e reparando as vítimas. E que também determine as mudanças legais que estamos pedindo”, afirmou.

A peça jurídica é bastante contundente e aponta responsabilidades para além dos quatro réus que foram condenados no júri em 2021. Embora o réu nesse processo internacional seja a União, como ressaltou Tâmara, familiares das vítimas da boate Kiss esperam também futuras responsabilizações individuais e na esfera administrativa.

“O sistema interamericano não julga pessoas, julga o Estado, mas vai pedir que a União determine aos seus órgãos competentes a abertura de processos contra essas pessoas que contribuíram, seja por omissão ou ação, para que a tragédia acontecesse. Nossa expectativa é de que ainda venham a ocorrer processos judiciais, porque eles não existiram em nenhum momento contra o ex-prefeito Cezar Schirmer, por exemplo, assim como os secretários, pessoas que até hoje ocupam cargos públicos em Porto Alegre e Santa Maria. Alguns foram coniventes e permitiram que essa tragédia acontecesse. Além disso, como já referi, é importante a continuidade da prisão dos quatro réus: os dois empresários e os dois músicos, que são os principais responsáveis”, concluiu.

As responsabilidades

Em um documento de 168 páginas enviado pela equipe jurídica da AVTSM à Comissão em janeiro, são elencadas as responsabilidades de agentes públicos, como servidores da prefeitura de Santa Maria, o Ministério Público e o Corpo de Bombeiros.

Servidores públicos de Santa Maria

Segundo o documento, o município de Santa Maria, em desacordo com a jurisprudência do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, desrespeitou os deveres de regulamentar, supervisionar e fiscalizar a prática de atividades perigosas, que impliquem riscos significativos para a vida e a integridade das pessoas submetidas a sua jurisdição, como medida para proteger e preservar esses direitos.

A petição diz que há uma relação direta entre a omissão do município no cumprimento de seu dever de fiscalizar a execução de obras na boate e a existência de todos os fatores que contribuíram para a ocorrência do incêndio e a elevação do número de mortos:

  • Presença de espuma tóxica;
  • Barras de contenção e guarda-corpos obstruindo as rotas de fuga, além de desníveis;
  • Ausência de iluminação de emergência;
  • Ausência e problemas com extintores;
  • Superlotação, falta de rotas de saída devidamente demarcadas e falta de equipe treinada como brigadistas de incêndio e para emergências.

Promotores de Justiça do MP/RS

Conforme o documento, em diversas oportunidades, o Ministério Público ordenou que modificações na boate fossem realizadas com vistas à redução da emissão de ruído, resultando na realização de obras de fechamento das janelas basculantes dos banheiros e colocação de revestimento de madeira na fachada externa da boate. Fatores que, segundo a peça jurídica, contribuíram para o elevado número de mortes no dia do evento.

“Essas modificações estruturais, que eram contrárias à legislação, embora tenham sido realizadas durante o trâmite do Inquérito presidido pelo Ministério Público, não foram averiguadas pelo órgão, que tampouco ordenou aos órgãos competentes do Município que as avaliassem”, diz um trecho do documento.

Corpo de Bombeiros

Ainda conforme o documento, comprovou-se que também houve falha no dever de fiscalizar do Corpo de Bombeiros, pois, no dia do incêndio, a boate Kiss estava aberta ao público sem o Alvará de Prevenção, Proteção e Combate a Incêndios válido. Durante os três anos e meio do seu funcionamento, a Kiss operou por 17 meses sem o referido Alvará de Prevenção a Incêndios, conclui a defesa da AVTSM.

Deslegitimação da luta por justiça dos sobreviventes, pais e familiares

No documento, também há apontamentos em relação à defesa de Kiko Spohr, sócio da Kiss:

“Uma campanha que difamava as famílias foi colocada em marcha pelas defesas dos réus, com as expressões ‘dolo eventual não’ e ‘vingança não é justiça’. O objetivo foi desqualificar o júri perante a opinião pública, porque houve a condenação dos réus. Chamar de vingança a única e parcial justiça que as vítimas de uma tragédia como a da Kiss obtiveram 10 anos depois dos fatos foi uma agressão muito grave aos pais e familiares. Com efeito, seis meses depois do júri e dessa mobilização pública, o júri foi anulado pelo Tribunal de Justiça do RS”, finaliza o documento.

A flexibilização da Lei Kiss

As informações foram divulgadas na sede do Sindicato dos Engenheiros do Rio Grande do Sul nesta quarta-feira, durante uma entrevista com os detalhes do processo. No evento, também foi criticada a recente flexibilização da Lei Kiss, que trazia um conjunto de medidas para prevenção de incêndios.

Ressaltou o vice-presidente da entidade, João Leal Vivian: “O principal ponto é a questão dos processos simplificados que foram incorporados na lei. Principalmente depois de 2016, quando também ampliaram os prazos desses documentos. E hoje, para dar entrada no Corpo de Bombeiros, não é necessário um profissional legalmente habilitado. Então, estão sendo feitos por leigos, como despachantes, contadores, entre outros, e não por engenheiros.”

Emocionado, o presidente da AVTSM, Flávio Silva, pai de Andrielle Righi da Silva, que morreu na tragédia aos 22 anos, reforçou o pedido para que a “injustiça acabe”. Ele também criticou o afrouxamento da Lei Kiss, que trata da prevenção contra incêndios. “Se hoje estamos aqui, é porque violências graves aconteceram. Eu tenho vergonha de morar no Brasil, um país tão desprovido de justiça. Os políticos criaram uma lei, e eles mesmos acabaram com ela. Isso prova que o que menos importa para eles é a vida das pessoas. Está na hora de um basta nisso”, ressaltou.

A situação dos réus condenados

Os sócios da boate Kiss, Elissandro Callegaro Spohr e Mauro Londero Hoffmann, estão na Penitenciária Estadual de Canoas (Pecan). Já o vocalista da banda, Marcelo de Jesus, e o ajudante Luciano Bonilha estão no presídio de São Vicente do Sul.

Na noite do último domingo (26), ocorreu uma vigília na Praça Saldanha Marinho. Em seguida, uma caminhada silenciosa percorreu a Avenida Rio Branco até o local onde funcionava a boate, e onde hoje está sendo construído um memorial. No local, ocorreu o ato “Muro da Memória”, com a fixação de fotos das vítimas e velas formando o número 242. Vídeos com mensagens e depoimentos também foram exibidos, além do tradicional “minuto do barulho”, próximo ao horário em que o incêndio começou.

Situação na Justiça

Após reviravoltas judiciais, em 2019, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que os quatro acusados seriam levados a júri popular. Em dezembro de 2021, o julgamento resultou em condenações por dolo eventual, com penas que variavam entre 18 e 22 anos e 6 meses de prisão.

No entanto, em 2022, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS) anulou o julgamento, alegando nulidades processuais, como o sorteio dos jurados fora do prazo legal e a impossibilidade de acesso prévio à lista dos jurados pelas defesas. A decisão gerou indignação entre familiares e sobreviventes, que consideraram a anulação baseada em detalhes técnicos que não prejudicaram o julgamento em si.

Em setembro de 2024, Mauro Londero Hoffmann, Elissandro Callegaro Spohr, Luciano Augusto Bonilha Leão e Marcelo de Jesus dos Santos retornaram à prisão. A decisão foi proferida pelo ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal (STF), que derrubou as decisões anteriores que haviam anulado o júri.

A anulação, ocorrida em agosto de 2022 pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, havia libertado os quatro réus, sob alegações de irregularidades no processo, como falhas na escolha dos jurados. A decisão do STF restabeleceu as condenações originais, determinando a prisão imediata dos réus.

Contrapontos

O Ministério Público do Rio Grande do Sul disse não iria se manifestar sobre o caso. A reportagem aguarda o posicionamento da defesa Elissandro Spohr,  do Corpo de Bombeiros, e de Cezar Schirmer.

Confira a reportagem em áudio: