No Carnaval deste ano, as mulheres terão um recurso a mais para lidar com as agressões a sua dignidade: a Lei 13.718, aprovada pelo Senado em agosto do ano passado e sancionada em setembro pela Presidência da República. A lei prevê pena de um a cinco anos de prisão para quem pratica a importunação sexual.
Ninguém espera que, por causa da lei, ainda pouco conhecida, o comportamento dos homens mude do vinho para a água. Por isso, na opinião da consultora do Senado e especialista em direito penal Juliana Magalhães Fernandes Oliveira, os festejos que começam oficialmente no sábado (2) serão o primeiro grande teste pelo qual as novas normas vão passar. Tipicamente, no Carnaval aumentam ocorrências de assédio físico, como passar a mão ou se esfregar no corpo da mulher.
Até seis meses atrás, esses atos mais ou menos furtivos eram punidos basicamente com multas — de R$ 318 a R$ 47,7 mil — e, no máximo, curtos períodos de prisão. Levando em conta a legislação, os juízes entendiam que se tratava de importunação ofensiva ao pudor ou molestamento, contravenções penais previstas nos artigos 61 e 65 do Decreto-Lei 3.688, de 1941. A contravenção é uma falta considerada mais leve que o crime. Pode ser punida de forma pecuniária e ou com prisão simples (regime aberto ou semiaberto). O crime requer a pena de reclusão (regime inicial fechado) ou detenção (regime inicial semiaberto), dependendo da gravidade.
Mesmo no caso de um homem que se masturbou e ejaculou no pescoço de uma passageira de ônibus em São Paulo, há um ano e meio, o juiz entendeu que não havia crime de estupro. Afinal, ele não submetera a vítima à força nem a ameaçara — ainda que a própria circunstância a tivesse inibido em sua defesa.
Esse caso provocou indignação e contribuiu para que se buscasse uma punição intermediária entre a mera contravenção e o crime de estupro. Projetos de autoria das ex-senadoras Vanessa Grazziotin e Marta Suplicy e do senador Humberto Costa (PT-PE) foram então reunidos a outras propostas da Câmara pela ex-deputada federal Laura Carneiro.
A atuação das duas casas do Congresso mostrou-se bem-sucedida, ao fazer a legislação evoluir, elevando o grau de cidadania de pessoas usualmente expostas a constrangimentos e violência sexual. É preciso deixar claro que a nova lei vale para indivíduos de qualquer sexo ou gênero, embora os agressores em sua maioria sejam homens.
— O texto da lei atende às expectativas: tutela (ou seja, protege e defende) o bem jurídico que é a dignidade sexual da mulher — observa a consultora do Senado.
Conforme Juliana, essa tutela tem força, apesar de o artigo incorporado ao Código Penal (215-A) não especificar as condutas entendidas como “ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro”. Segundo ela, “a leitura da lei é genérica, como é característico do direito penal, mas tecnicamente não há erro” por abranger “todos os casos que não são estupros”.
A especialista, entretanto, chama a atenção para as zonas cinzentas que cercam por vezes os episódios de importunação sexual, que têm de ser analisados com critério para não gerar equívocos. Logo que a lei foi sancionada, alguns juristas consideraram complicado definir o que é um “ato libidinoso”. Uma dessas zonas cinzentas envolve, por exemplo o tradicional beijo roubado, que alguns tendem a considerar ato sem maior importância e até “parte da festa”. Pois bem, esse gesto cantado em verso e prosa agora é crime de importunação. Já o beijo à força ou qualquer outro ato consumado mediante violência ou grave ameaça, para impedir a vítima de se defender ou fugir, é crime de estupro — independentemente de haver penetração, segundo Juliana.
O uso da força determinou o indiciamento por estupro do mesmo homem que a Justiça havia libertado por ejacular na passageira. Numa transgressão muito semelhante, uma semana depois, ele tentou impedir a vítima de escapar, o que agravou a importunação.
Em novembro de 2018, dois meses depois de sancionada a Lei 13.718, um outro homem ejaculou ao se encostar em uma mulher no metrô de São Paulo. Ele foi condenado, por importunação, a três anos de reclusão.
Os números nacionais da aplicação da lei ainda não estão disponíveis no Conselho Nacional de Justiça, já que o crime foi tipificado muito recentemente. No Distrito Federal, de acordo com a Secretaria de Segurança Pública, foram registrados 53 casos entre setembro e dezembro. No mesmo período, aumentaram em São Paulo os registros de “outras ocorrências contra a dignidade sexual”: de 4,07 casos em média, entre setembro de 2011 e setembro de 2018, para 22 casos em média, entre outubro e dezembro do ano passado. No estado do Rio de Janeiro, o Instituto de Segurança Pública disponibiliza as ocorrências com base na Lei de Contravenções Penais: em 2017 foram registrados 595 casos de importunação ofensiva ao pudor, que hoje poderiam ser classificados como importunação sexual.
Estatísticas como essas estão sendo acessadas de maneira exploratória pelo Observatório da Mulher contra a Violência/DataSenado. Assim que os órgãos de segurança e o Poder Judiciário estruturarem os levantamentos sobre a aplicação da Lei 13.718, o observatório fará uma coleta sistemática para oferecer a parlamentares e à sociedade.
Projetos
Uma proposta remanescente da legislatura passada — o PLS 64/2015, do senador Romário (PSB-RJ) — também criminaliza o contato físico para fins libidinosos, bem como a divulgação do ocorrido, punindo-os com prisão e multa. O projeto dispõe, ainda, que os responsáveis pelos serviços de transportes “cuidarão da segurança das passageiras, reservando área privativa e afixando aviso de que o ato constitui crime”. O texto tramita na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) e está à espera de relator.
Recém-chegada ao Parlamento, a senadora Leila Barros (PSB-DF), ex-jogadora de vôlei da seleção brasileira, apresentou no início desta legislatura um projeto (PL 549/2019) que altera o Estatuto do Torcedor (Lei 10.671, de 2003).
A proposta, que aguarda a designação de relator na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH), estabelece que as torcedoras sejam protegidas contra qualquer ação ou omissão baseada em gênero que lhes cause risco de morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico ou dano moral ou patrimonial.
Leila Barros situa as “práticas violentas e assediadoras” no contexto de “histórico machista e paternalista da sociedade brasileira”. Para ela, o efetivo cumprimento da Lei 13.718 está diretamente ligado à divulgação do teor da nova legislação.