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Maior acidente radiológico do mundo completa hoje 25 anos

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Contaminação com o césio-137 marcou Goiânia, em setembro de 1987. De acordo com a Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cnen), este foi o maior acidente radiológico — que envolve uma fonte radioativa usada em hospitais — do mundo. O maior acidente radioativo de forma geral foi na usina nuclear de Chernobyl, na atual Ucrânia, em 1986.

Os dados oficiais e a contagem das vítimas divergem no que diz respeito ao número de mortos e de pessoas diretamente afetadas. Mas o fato é que, nos dias posteriores à divulgação da abertura da cápsula radioativa, a Cnen monitorou os níveis de radioatividade de 112.800 pessoas, no Estádio Olímpico de Goiânia.

Em 271 delas, foi constatada a contaminação pelo césio-137. Nesse grupo, 120 tinham rastros da substância em roupas e sapatos; nos outros 151 foram observadas contaminação interna e externa ao organismo. A Cnen percebeu ainda danos causados por radiação em 28 pessoas. Na época, 20 foram hospitalizadas.

No dia 1º de outubro daquele ano, um grupo de 14 pessoas que estavam em estado mais grave foi levado para o Hospital Naval Marcílio Dias, no Rio de Janeiro. Poucas semanas depois, quatro dessas pessoas morreram enquanto se tratavam no Rio. A primeira foi Leide das Neves Ferreira, de 6 anos, garota que se tornou o símbolo dessa tragédia. No mesmo dia, morreu Maria Gabriela Ferreira, de 37 anos. Naquela mesma semana, faleceram também dois jovens, de 22 anos e 18 anos. Esses quatro mortos são os únicos contabilizados pelos dados oficiais, que reconhecem ainda que outros quatro tiveram danos na medula óssea e oito tiveram síndrome de radiação aguda.

Na visão do presidente da Associação das Vítimas do Césio (AVCésio), Odesson Alves Ferreira, que teve cerca de 50 parentes atingidos e seis mortos em consequência do acidente, o número é bem maior. “Estima-se que, nesses 25 anos, 104 pessoas tenham morrido e 1.600 tenham sido afetadas de forma mais direta, entre as pessoas envolvidas com a tragédia e aquelas que trabalharam para controlá-la, como policiais militares, bombeiros e servidores públicos do estado”, avalia. Parte das pessoas que se consideram vítimas e carregam no corpo sequelas que atribuem a exposição à radioatividade ainda luta na Justiça por reconhecimento.

Odesson Ferreira é irmão de Devair, o dono do ferro-velho onde a cápsula de césio foi aberta em Goiás (Foto: Versanna Carvalho/G1)Odesson Ferreira é irmão de Devair, o dono do
ferro-velho onde a cápsula de césio foi aberta
(Foto: Versanna Carvalho/G1)

Contaminação
A tragédia começou quando dois jovens catadores de materiais recicláveis abrem um aparelho de radioterapia em um prédio público abandonado, no dia 13 de setembro de 1987, no Centro de Goiânia. Eles pensavam em retirar o chumbo e o metal para vender e ignoravam que dentro do equipamento havia uma cápsula contendo césio-137, um metal radioativo.

Apesar de o aparelho pesar cerca de 100 kg, a dupla o levou para casa de um deles, no Centro. Já no primeiro dia de contato com o material, ambos começaram a apresentar sintomas de contaminação radioativa, como tonteiras, náuseas e vômitos. Inicialmente, não associaram o mal-estar ao césio-137, e sim à alimentação.

Depois de cinco dias, o equipamento foi vendido para Devair Alves Ferreira, dono de um ferro-velho localizado no Setor Aeroporto, também na região central da cidade. Neste local, a cápsula foi aberta e, à noite, Devair constatou que o material tinha um brilho azul intenso e levou o material para dentro de casa.

Devair, sua esposa Maria Gabriela Ferreira e outros membros de sua família também começaram a apresentar sintomas de contaminação radioativa, sem fazer ideia do que tinham em casa. Ele continuava fascinado pelo brilho do material. Entre os dias 19 e 26 de setembro, a cápsula com o césio foi mostrada para várias pessoas que passaram pelo ferro-velho e também pela casa da família.

Algumas delas, como um dos irmãos de Devair, Ivo Alves Ferreira, foram visitá-los justamente por saberem que ele estava adoentado. As pessoas mais próximas chegaram a ganhar pequenas porções do césio, que facilmente se transformava em pó. Em casa, Ivo mostrou o pó que brilhava para a sua família. A sua filha mais nova, Leide das Neves Ferreira, de  6 anos, ficou encantada com o material e brincou muito com ele.

Vista aérea do ferro-velho para onde o equipamento de raio-x foi levado no Setor Aeroporto, Goiânia, Goiás (Foto: Yoshikazu Maeda/O Popular)Ferro-velho para onde o aparelho de radioterapia foi levado, no Setor Aeroporto (Foto: Yoshikazu Maeda/O Popular)

Vigilância Sanitária
Alertada por uma vizinha, a mulher de Devair começou a desconfiar que o constante mal-estar e doenças de pele que acometiam a família poderiam ter relação com a pedra azul que estava em sua casa. No dia 28 de setembro de 1987, uma segunda-feira, Maria Gabriela, com a ajuda de um amigo, levou a cápsula, que pesava 22 kg, em um ônibus do transporte coletivo, para o prédio da Vigilância Sanitária, no Setor Aeroporto.

A esta altura, um grupo de pessoas foi encaminhado para internação no Hospital de Doenças Tropicais (HDT), devido aos problemas na pele. A origem das doenças intrigava a equipe médica. A verdadeira origem dos problemas só foi constada no dia 29 de setembro, quando um físico que estava de férias em Goiânia conseguiu um aparelho que media radioatividade e constatou elevados níveis de radiação na região do prédio da Vigilância Sanitária. A partir deste momento, bombeiros, Polícia Militar, Secretaria Estadual de Saúde e Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cnen) foram acionados.

A situação de Leide foi ainda pior porque, ao fazer um lanche depois de brincar com a novidade, acabou ingerindo, acidentalmente, partículas do pó misturadas ao alimento. Isso aconteceu longe dos olhos da mãe.

As mortes ocorreram poucas semanas depois da descoberta do que passou a ser considerado o maior acidente radiológico do mundo — com uma substância radioativa usada em hospitais. Leide, a tia dela, Maria Gabriela, e dois funcionários do ferro-velho foram as vítimas que não suportaram os efeitos da radioatividade.

Os corpos das quatro primeiras vítimas do césio-137 estão enterrados em um cemitério municipal de Goiânia, o Cemitério Parque. Os túmulos têm mais que o dobro do tamanho dos outros. Debaixo do mármore, existem toneladas de concreto. Cada caixão pesava cerca de quinhentos quilos. Tudo isso para bloquear a emissão de material radioativo.

Os túmulos estão em um canto do cemitério, em um local bastante tranquilo, bem diferente daquele dia do enterro, quando uma multidão protestava contra a decisão de enterrá-los em um cemitério comum. “Eu estava dopada com remédios, mas vi tudo. As pessoas jogavam pedra, jogando pedaço de meio-fio”, recorda-se Lourdes.

Apesar do tumulto, prevaleceu a vontade da maioria e o enterro não mudou de lugar. Se tivesse sobrevivido, Leide estaria hoje com 31 anos de idade. “Uma parte do meu coração e da minha vida se foi com ela. A forma como tudo aconteceu foi uma coisa louca, dolorosa. Só eu mesma para saber. Não desejo que isso aconteça com ninguém”, conta a mãe. Ela diz ainda que não consegue passar um único dia sem se lembrar da filha e da tragédia vivida por sua família. “Não tem como não lembrar” 

Lourdes também perdeu o marido na tragédia. Ivo Alves Ferreira morreu 16 anos depois do acidente radioativo. Ele carregava o arrependimento por ter levado para casa o pó do césio para a filha brincar. O irmão de Ivo, Devair Alves Ferreira, que era dono do ferro-velho onde a peça foi aberta, morreu sete anos depois da tragédia, em 1994. Na época, quando ainda passava pela descontaminação, ele falou sobre a tragédia provocada pela luz hipnotizante. “Eu só me sinto triste porque de uma forma ou de outra eu prejudiquei toda a minha família”, disse Devair à TV Globo, em outubro de 1987.

Um dos irmãos de Devair e Ivo e atual presidente da Associação das Vítimas do Césio (AVCésio), Odesson Alves Ferreira cita uma frase dita por Devair que marca o episódio: “Eu me apaixonei pelo brilho da morte”.

Na opinião de Odesson, os irmãos Devair e Ivo sobreviveram à tragédia, mas não conseguiram superá-la. “Os dois entraram em um processo de depressão. O Devair se sentia responsável por ter colocado toda a família naquela situação. O Devair se embrenhou pelo caminho dos vícios. O da bebida, principalmente”, lamenta, em entrevista ao G1.

Já Ivo, afirma Odesson, se culpava por ter levado o pó de césio para casa e deixado a filha brincar com ele. “O Ivo fumava seis maços de cigarro por dia. É uma maneira que eles [Ivo e Devair] encontraram de se suicidar. Eles viam que estavam morrendo lentamente e continuavam fazendo. Tentamos muito tirar o vício dos dois, mas não conseguimos. Eles achavam que tinha que ser daquele jeito e acabou sendo. Eles morreram muito jovens. Devair morreu em 1994, aos 42 anos, e Ivo, em 2003, aos 54”, conta Odesson.

Odesson Ferreira mostra as sequelas visíveis do contato direto com o Césio-137, em Goiânia (Foto: Versanna Carvalho/G1)Odesson mostra as sequelas do contato com o
césio (Foto: Versanna Carvalho/G1)

 

 

 

 

 

Marcas

Da mesma forma que muitas das pessoas que manusearam o césio, Odesson, que só ficou com o pó do césio por cerca de dois minutos, carrega na mão sinais de contato com o material. “Além da palma da mão, que eu perdi [mostra pele mais escura, resultado de um enxerto com parte da pele da barriga], perdi parte de um dedo e outro ficou atrofiado”, mostra.

Maria Abadia Ferreira — mãe de Odesson, Devair e Ivo — viu a família inteira ser contaminada, inclusive ela. “Eu não gosto nem de lembrar. É tanta coisa, é muito duro. A minha família foi a mais atingida”, lamenta.

Odesson conta que até hoje a família não se refez completamente. “Uma coisa que dói muito na gente é o afastamento, principalmente da família. A nossa família era muito próxima, gostava de se reunir para fazer um almoço, um churrasco. Hoje é muito ruim. As pessoas não podem mais juntar porque o assunto fica desagradável. A gente não consegue fazer um almoço de família sem tocar no assunto. E isso dói muito”, desabafa.